quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Sobre aflições, esperanças e metáforas

Há exatos três anos, no final da tarde, o sol entrava alaranjado pela única janela do quarto 313 do Hospital de Caridade, chocando-se com o azul-esverdeado das paredes. O calor era forte e os dois ventiladores de teto do quarto faziam mais barulho do que refrescavam. Perpendicular à minha, o leito de um rapaz que havia substituído boa parte das válvulas cardíacas há pouco mais de uma semana. Ele estava bem.

- Já que não tem jogo do Inter, vou ver este da segunda divisão mesmo.

Num salto, quase derrubando o suporte com dois frascos de soro, me joguei para o espaço entre as camas, arrastando uma poltrona amarela. E olhando sério para o vizinho de cama.
- Soninha, me alcança a camisa tricolor que a batalha vai começar.

Trocar a camisa com o soro espetado no braço é uma operação complicada, mas vestir a camisa do Grêmio, depois da provocação, era questão de honra. A camisa pólo branca, com frisos azuis e pretos na gola e nas mangas e emblema bordado em cima do coração, eu havia herdado do meu pai.

Grêmio e Náutico começaram um jogo mais ou menos. O gol não saía. E os quase dois meses de cama faziam meu corpo inteiro doer. Eu não conseguia me ajeitar na poltrona amarela e, irritado, falava alto, xingava jogadores e aquela coisa toda. O rapaz ao lado nem piscava.

- Tem que botar o Anderson - eu dizia para as paredes.

A Soninha, quietinha e solidária, cuidava para que eu não arrancasse o soro, oferecia Gatorade. Mas nem jujuba eu queria. O corpo doía mais quando chegou o Jorge Bello, o massoterapeuta que viria aliviar as dores musculares. Bem no intervalo do jogo.

Quando começou o segundo tempo eu estava de bruços na cama. Só de cuecas e com a camisa enfiada só no braço do soro. Só uma fresta entre a parede e a cortina, que me isolava visualmente dos outros quatro pacientes do quarto, me punha em contato com a TV.

O Jorge estralava minhas costelas quando o juiz marcou pênalti contra o Grêmio. Eu enfiei a cara no travesseiro e percebi que a Soninha ficara nervosa, agitada no espaço entre as camas.

- Como é que pode? Este jogo não vai acabar. Meu amor, tu tá bem?

Minha cara estava enfiada no travesseiro. Na minha cabeça passou o filme de mais um ano na segundona. E o cara do coração remendado comentava em voz alta que quatro haviam sido expulsos.

- Nosso goleiro pegou!

A Soninha pulava, num comportamento bem pouco apropriado para o recinto. Eu pulei da cama, como quem foge do cara da massagem, de cueca, me enrolando num lençol. Não conseguia falar nada. Engasguei apoiado no suporte do soro e sentei na poltrona.

-Aaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhh!

Quando e menina da enfermagem apareceu assustada na porta, eu expliquei para o hospital inteiro ouvir:

- É gol do Grêmio. Chega de segundona. Com sete em campo, com sete!

A quimioterapia que começaria na semana seguinte já não tinha nenhuma importância. Também não importavam os prognósticos médicos pouco otimistas. Se o Grêmio vencia com sete em campo, porque eu não poderia vencer um câncer?

Naqueles dias quentes de sol alaranjado refletindo nas paredes azul-esverdeadas, eu só precisava de esperança. E foi o que o Imortal Tricolor me ofereceu na forma de metáfora.
Nada justifica desistir, sempre dá para virar a situação, sempre é possível.

Pode parecer inapropriado misturar futebol com coisa tão séria quanto doença. Hoje, plenamente recuperado, muitos amigos me pedem para conversar com pessoas doentes, contar da superação do linfoma, como se eu fosse um paradigma de possibilidade. E eu vou ao encontro delas com muita alegria, conto como foi, revelo alguns truques contra efeitos colaterais da químio. Não escapo da tarefa de levar um pouco de esperança.

Nestas horas eu me sinto envolvido por uma luz alaranjada, mesmo que eu esteja longe de paredes azul-esverdeadas, e repasso ao amigo a metáfora que eu ganhei.

- Não tem jogo perdido.



4 comentários:

Adriane Canan disse...

Você é o cara! Viva a esperança! Viva a vida! Beijo enorme, querido!

Frank Maia disse...

podias ler esse texto pro pessoal lá da Gavéa???

Diego Zucolotto disse...

Grande Gastão!! tudo de bom pra ti e pro nosso Grêmio. Abraço!!

Carolina Wanzuita disse...

Já ouvi esse texto "ao vivo", mas me emocionei novamente. Saudades!